segunda-feira, 20 de maio de 2013

Uma Semente de Humanidade

Dentro do cérebro, mais especificamente no lóbulo frontal inferior começava mais uma reunião do sindicato dos neurônios-espelho. O Neurônio-presidente tinha a palavra:

- Todos aqui sabem nossa função, nós somos os neurônios que dão a capacidade de um ser humano se colocar no lugar de seu semelhante, nossa função é criarmos empatia entre os homens e garantir a convivência entre os diferentes!

Os neurônios-espelho da plateia se olharam orgulhosamente, a atmosfera estava elétrica, o presidente continuou seu discurso:

- Nossa causa é nobre, porém nossos resultados tem sido abaixo da média. Esse ser humano do qual nós fazemos parte tem se mostrado preconceituoso e intolerante, ele se dedica a incitar atos de discriminação contra aqueles que são diferentes dele mesmo. Seja pessoas de outra cor, opção sexual, credo ou torcedores de outro time, ele prega o ódio todos os dias. Não podemos deixar isso acontecer, temos que fazer alguma coisa!

Os outros neurônios aproximaram seus axônios e começaram a fazer sinapses em sinal de aprovação à fala do presidente, que continuou:

- Eu tenho um plano, nós temos que intensificar nossas sinapses, façamos um mutirão, se nos unirmos ele não terá como nos bloquear e começará a enxergar através dos olhos das pessoas que ele tanto discrimina!

No dia seguinte, os neurônios começaram desde cedo a tentar recuperar um pouco da humanidade e da tolerância perdida por tanto ódio. As sinapses eram tão intensas que era como se a alma do preconceituoso se transferisse como que por mágica para a esfera de consciência daquelas pessoas ofendidas.

Logo de manhã bem cedo, Carlos foi assistir ao jornal como de costume, a diferença era que dessa vez algumas notícias lhe causavam grande tumulto nos sentimentos. Uma notícia sobre uma enchente que destruiu uma cidade inteira lhe fez chorar copiosamente, quando antes ele nem ligava para esse tipo de acontecimento. Quando o jornalista falou sobre uma derrota que abalou profundamente a torcida do time rival, ao invés de sorrir e comemorar como sempre fazia ao ver torcedores de outros times chorarem, Carlos se pegou pensando que aqueles torcedores "rivais" amavam o time deles da mesma forma que ele amava o seu e que não era certo sentir prazer ao ver a dor alheia.

O trabalhos dos neurônios-espelho assim prosseguiu durante todo o dia. Carlos viu um mendigo e procurou lhe dirigir algumas palavras carinhosas, no trabalho ele procurou ter paciência com seus estagiários, não usou de palavras de baixo calão quando falava sobre as mulheres de seu trabalho, enfim o projeto dos neurônios ia de vento em popa quando de repente um colega de Carlos lhe dirigiu a palavra:

- Porra Carlinhos, cê tá esquisito hoje, esse não é o Carlos que eu conheço!

Aquela frase pode ser comparada ao som da corneta de um arauto convocando um exército para a batalha, aqueles dizeres acordaram os neurônios de outras regiões do cérebro de Carlos, acordaram o bom e velho Carlinhos...

Uma batalha agora acontecia dentro de seu cérebro, sinais elétricos de ambos os lados do combate iluminavam os hemisférios, era como uma tempestade de verão. Os neurônios do antigo Carlos, com todas as suas crenças preconceituosas atacavam os neurônios-espelho que tentavam transformar Carlos em uma nova pessoa. A batalha seguiu e contando com a superioridade numérica, os neurônios antiquados venceram, esmagaram os neurônios empáticos e ao final do dia Carlos já assistia ao noticiário noturno rindo ao ver desgraças alheias e achando excelente ouvir a notícia de que um homossexual tinha sido assassinado por um grupo de extermínio. 

O general dos neurônios-espelho conseguiu reunir algumas tropas e sobreviver, ele disse aos seus comandados:

- Perdemos a batalha, mas não a guerra! No dia de hoje plantamos a semente de um novo ser, verdadeiramente humano!


quinta-feira, 25 de abril de 2013

Negócios, Negócios, amigos à parte (nº3) - Nunca confie em seu Tradutor Bing!


O ditador da Coreia do Norte Kim Jong-il conversa com seu estimado conselheiro e tradutor, o Sr. Kim Bing:

- Eu sinto a minha morte se aproximando meu caro Bing. Quando eu morrer eu precisarei que você me faça um grande favor, se fizeres isso será um dos maiores heróis de nossa nação!
- Ó supremo líder, o senhor ainda tem energia de sobra, não precisa se preocupar com a morte por um bom tempo! Eu vejo os posteres com as fotos de Vossa Santidade nas ruas de Pyongyang, o senhor me parece bastante saudável!
- O povo é muito generoso comigo Sr. Bing! Eles passam fome, porque sabem que para a nossa nação ser cada vez mais forte só eu e o meu séquito podemos comer bem! Mas de qualquer forma, eu tenho um pressentimento que não vou durar muito...
- Duvido muito senhor! o povo passa fome com prazer pelo senhor e agradece aos céus por termos um líder tão sábio! Mas caso aconteça esse desastre que seria a sua morte, que favor é este que o senhor me pede?
- Você conhece o meu filho, o Kim Jong-Un, ele é um molenga, o bobão é apaixonado pela democracia, ele vai me suceder como líder e vai entregar nosso pais para os americanos. O Obama vai seduzi-lo rapidinho com aquele papinho dele de governança global, meio ambiente, democracia e etc.
- É líder supremo, ele já me pediu para traduzir filmes e revistas americanas para ele, eu queimei tudo!
- Eu não posso matá-lo, ele é sangue do meu sangue. Eu preciso que você faça o seguinte caso eu morra...
Kim Jong-il explicou seu plano para seu tradutor que prometeu cumpri-lo fielmente.

O ditador estava correto em seus pressentimentos, faleceu pouco mais de um mês depois da conversa com o tradutor.

A primeira vontade do novo ditador foi conversar com seu ídolo Barack Obama, apesar de todos os conselheiros terem lhe alertado que aquele não era o caminho desejado pelo seu falecido pai. O tradutor Bing teria que colocar o plano em funcionamento do falecido ditador mais cedo do que ele imaginava. Kim Jong-Un ligou para Obama e disse:

- Presidente Obama, eu sou seu fã, você é um presidente que inspira toda a Coreia do Norte!
O tradutor Bing balançou a cabeça negativamente e traduziu assim:
- Você é um demônio em forma de homem, a Coreia do Norte te despreza!
O recém-empossado ditador não entendia porque Obama tinha ficado sério. O presidente americano respondeu:
- Realmente é uma pena que você siga a detestável linha empreendida pelo seu pai, teremos dificuldades...
Traduzido por Bing:
- Eu te considero um asno pior do que o seu pai, nós te destruiremos rapidamente!
O ditador estava confuso, ele pensava que o Presidente Obama era um homem de paz. O Norte-Coreano insistiu:
- Eu desejo a paz e a reunificação da Coreia!
Tradutor Bing:
- Eu dominarei a Coreia do Sul!
- Quero abandonar todas os meus projetos nucleares!
Tradutor Bing:
- Construiremos mísseis e mais mísseis, até que possamos atingir o seu país!
- Quero alimentar os que morrem de fome nesse país!
Tradutor Bing:
- Apenas os dirigentes desse país tem direito a se alimentar bem, para serem cada vez mais fortes!
Nesse ponto, Obama já fazia ameaças de guerra, o tradutor Bing nem precisava deturpar as palavras do presidente americano, pela primeira vez durante a conversa, o tradutor traduzia corretamente. Obama bradou:
- ESTOU MOVIMENTANDO TODO O MEU EXÉRCITO PARA INVADIR O SEU PAÍS AGORA, DITADOR SANGUINÁRIO!
Obama desligou o telefone. Durante todo o tempo em que seu pai era vivo, Kim Jong-Un nunca entendeu o motivo da agressividade perante os americanos, agora ele percebia que Obama era um lobo em pele de cordeiro. Ele disse a Bing:
- Prepare nossos mísseis, temos que defender a Coreia desse tirano que é Obama!
Bing sorriu e teve orgulho de si mesmo, o plano tinha funcionado, o jovem ditador estava preparado para seguir o legado de sua família.


sexta-feira, 5 de abril de 2013

O "Xadrez" do Xadrez

(Inspirado no grande documentário "Bobby Fischer against the World", um dos melhores documentários que já vi, fantástico, eu recomendo para quem quer conhecer a história completa desse personagem incrível e verdadeiro.)





O enxadrista se prepara para a maior partida se sua vida. Derrotar o russo e se tornar o campeão mundial de xadrez era a motivação que dirigia sua vida desde a sua adolescência. Num quarto de hotel, num país distante ele visualiza todas as aberturas possíveis, as jogadas, trilhões de combinações circulam em sua mente, que é confusa e brilhante ao mesmo tempo.

Percebe-se que um enxadrista está muito acima da média quando ele consegue, em seus treinamentos, jogar contra si mesmo, interpretando todas as jogadas de seu próximo adversário. Enclausurado em um apartamento, o enxadrista ficava por horas naquele jogo individual que para ele fazia todo sentido, para um observador pareceria uma tremenda loucura. Com a mão esquerda ele movia o bispo preto e com a mão direito posicionava o cavalo branco, tudo em alta velocidade...

Em seus poucos intervalos naqueles dias de preparação para o grande jogo, ele se pegava pensando na sua infância. Conheceu o tabuleiro de xadrez aos seis anos de idade e dele nunca mais se separou, e também por causa dele nunca mais conseguiu se aproximar de outras pessoas, o xadrez era a única coisa que importava para ele. Entretanto ser um gênio do xadrez, tinha o seu preço. Sempre que ele tentava investir em algum relacionamento com outro ser humano, a sua mente de enxadrista entrava em ação, ele analisava cada comportamento da outra pessoa sob os mínimos detalhes, assim como um movimento no xadrez pode desencadear milhões de possibilidade que por sua vez podem desencadear zilhões de outras hipóteses, ele tentava atribuir a cada atitude humana, zilhões de possibilidades.

Para a frustração do enxadrista, esse procedimento não trazia bons resultados em sua vida pessoal, uma vez que o comportamento humano escapa dos ditames lógicos que orientam o jogo de xadrez. Neste é possível prever o movimento do adversário quando se tem um cérebro afiado e treinado, pois existem regras claras e lógicas, já no jogo da vida os movimentos são aleatórios e muitas vezes ilógicos, todas as peças podem se movimentar em qualquer direção. Sua mente brilhante era constantemente bombardeada por ideias aleatórias, não conseguia entender a cadeia lógica dos sentimentos, coisa que homens muito menos inteligentes do que ele pareciam dominar com maestria.

O dia do grande jogo chegou. Os campeonatos mundiais de xadrez eram decididos em 20 partidas que duravam até mais de um mês. Os jogos foram duros, ele se mostrava superior a seu adversário, porém, às vezes se perdia em pensamentos distantes e acabava perdendo alguns jogos por isso. Se sagrou campeão mundial mesmo um pouco desconcentrado. Aquele era o topo de sua carreira, tudo aquilo pelo qual trabalhou, tudo aquilo pelo qual se afastou das pessoas, tudo aquilo pelo qual tocou por tão poucas vezes uma mulher. "Será que tinha valido a pena?", pensava o enxadrista.

Qualquer vitória esportiva conquistada durante a Guerra Fria contra os soviéticos trazia uma fama sem paralelo, no xadrez esse reconhecimento era ainda maior, devido ao domínio dos russos nesse jogo. Porém aquele enxadrista não estava preparado para o sucesso, a única coisa que ele sabia fazer era jogar xadrez e com a conquista da máxima glória, o xadrez parecia não mais fazer sentido para ele. A sua vida perdeu o sentido após a sua grande conquista, o que seria de sua vida agora?

Mesmo sem jogar uma partida de xadrez durante muitos anos após aquele campeonato mundial, o jogo começou a persegui-lo na sua vida cotidiana. Todo grande enxadrista deve ser paranoico quando está jogando, é a melhor maneira de se antever jogadas e pensar em possibilidades, desde que o jogador saiba manter a paranoia restrita ao tabuleiro. Com o campeão aconteceu exatamente o contrário, a paranoia do xadrez contaminou o seu pensamento em seu cotidiano. Ele pensava em bombas atômicas, ele um judeu, advogava teorias antissemíticas absurdas, pensava em teorias da conspiração malucas. A loucura do xadrez grassava incontrolável.

Não era a primeira vez que a loucura se apoderou de um grande enxadrista. Korchnoi disse ter jogado com um morto, Rubinstein pulou de uma janela porque uma mosca o perseguia, Steinitz achava que jogava xadrez contra Deus e ainda ganhava do Todo Poderoso, Carlos Torre tirou a roupa em um ônibus, entre tantos outros exemplos de enxadristas derrotados pela loucura. É o risco que os que se entregam a esse jogo estão sujeitos. O xadrez algema seu mestre, aprisionando sua mente e seu cérebro e até a liberdade do mais forte se abala.

Bobby Fischer, o grande enxadrista, nunca mais conseguiu escapar da paranoia que lhe dominou e faleceu  já idoso em uma cama de hospital, suas últimas palavras teriam sido as seguintes: "Nada cura mais do que o contato humano". Pena que o xadrez não deixou Bobby descobrir isso antes de ser tarde demais.








domingo, 3 de março de 2013

Dia D Lucrar

(Esse conto foi inspirado na música "The Longest Day" do Iron Maiden)


Um velho deitado em uma cama de hospital aguarda a visita da morte, em seu leito mais uma vez ele se lembra do inesquecível dia de 6 de Junho de 1944, um dia que viveu esses anos todos em sua memória, era como se todas as manhãs ele tivesse acordado naquele fatídico amanhecer em uma praia da Normandia...

A tropa se encontrava em um barco que mas parecia uma lata de sardinhas, ao lado, atrás, à frente, milhares de outros barcos como aquele, era como uma surreal "linha de produção" da morte, milhares e milhares de seres humanos sendo encaminhados ao seu destino final, O Sr. Henry Ford nunca imaginou que as suas ideias que revolucionaram o capitalismo seriam empregadas de tão sinistra maneira, a morte enlatada, indiferenciada, pasteurizada, sem personalidade, sem rosto, sem identidade. Todos que avançavam na linha de montagem da morte se encaminhavam para um fim idêntico, como se a Morte fosse a dona daquela empresa e estivesse aguardando ansiosamente pelos seus produtos com a foice em uma mão e o relógio na outra.

O velho que finalmente se preparava para encontrar seu destino após todos esses anos era, na época do dia D, um Capitão do exército americano, portanto, tinha a cruel tarefa de liderar homens, ou melhor, meninos, muitos nem sequer tinham sentido o calor de uma mulher, naquele dia liderá-los significava praticamente levá-los à Morte, que impacientemente aguardava os lucros daquele enorme empreendimento, quanto lucro, com certeza a Morte precisaria de aumentar seu capital para conseguir levar todas aquelas almas de uma só vez.

O Capitão era talvez 5 anos mais velho do que a sua tropa, tentava transparecer uma coragem e uma experiência que ainda não lhe pertenciam naquele estágio da vida, e com certeza ele não estava preparado para todo o impacto do que ele veria naquele dia. O dia amanheceu como se não houvesse manhã, a luz do sol era bloqueada pela fumaça dos barcos e das explosões causadas pelos projéteis de artilharia incessantes. Os projéteis se chocavam com o mar e causavam grandes ondas que faziam os barcos balançarem e os soldados vomitarem. Era apenas um teste de qualidade, a fim de preparar os produtos para o seu destino final...

Em sua mente ainda ecoava a mensagem do General Eisenhower, transmitida a todo o exército na véspera da invasão, uma mensagem que exortava os homens a serem corajosos para que fosse possível destruir os malignos nazistas. O jovem capitão, ao olhar para aqueles jovens amedrontados em seu barco, tinha dúvidas se o verdadeiro inimigo estava à sua frente ou se estava mesmo atrás deles, em seu próprio país, na forma dos ricaços que lucravam milhões com aquela guerra. A mensagem do General Eisenhower era muito nobre, muito bonita, mas se destinava a pobres coitados que deveriam jogar sua vida fora para que os interesses econômicos de milionários pudessem ser protegidos. No fundo, o Capitão sabia que eles não lutavam pela liberdade ou pela pátria, mas sim pela grana de poucos, e esse poucos não se responsabilizariam pelas mortes daqueles jovens. Era como se os grandes industriais e banqueiros americanos e ingleses tivessem assinado um contrato com a Dona Morte, trocavam almas por muita grana e influência...

Apesar de todas as suas dúvidas sobre os verdadeiros motivos daquela guerra, o capitão tentou liderar seus homens no desembarque na praia sangrenta da melhor forma possível, tentando cortar ao máximo os lucros que a Dona Morte aguardava ansiosamente. Ele fez o possível e o impossível para salvar seus homens, distribuiu morfina, estancou sangramentos, mandou os homens se abaixarem, tudo isso em baixo de saraivadas e mais saraivadas de chumbo quente. Não adiantou, por mais que ele tentasse, os homens que, se situavam covardemente longe do combate, tinham fornecido todos os instrumentos para que o empreendimento Morte S/A fosse um sucesso estrondoso. As balas chegavam zunindo e vinham como etiquetas, a selar o destino daqueles pobres jovens, que em breve seriam acondicionados em caixões e despachados ao seu destino final, para regozijo de Dona Morte e indiferença de seus aliados ricos, que estavam mais preocupados com a próxima grande venda de armamentos de guerra.

O Capitão sobreviveu ao Dia D e à Segunda Guerra Mundial, talvez a Dona Morte preferiu poupá-lo pois não desejava uma alma que suspeitasse de suas negociatas e de seus acordos secretos. Aquelas lembranças do dia mais longo da vida daquele velhinho pareciam ser o prelúdio do que estava por vir. Finalmente a Dona Morte, até porque o corpo do velho não aguentava mais, vinha a contragosto lhe buscar. Um tempo de Revolução se avizinhava nas empresas Morte S/A com a chegada daquela alma que sabia demais...







segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O Soluço Salvador


(Dedicado à Carolina, que, indiretamente, me deu a ideia para esse conto)

Era uma vez uma garota que vivia a soluçar para todos os lados, ela passava os seus dias soluçando sem parar. Ela dificultava a vida de seu dentista, ele não conseguia executar com precisão as suas técnicas, tendo que administrar aqueles solavancos causados pelos soluços perenes. Ela não podia dirigir, aqueles movimentos bruscos causados pelos soluços faziam-na perder o controle do carro, tinha dificuldades até mesmo para ingerir os alimentos que ficavam pulando em sua boca.
Ela já havia visitado vários especialistas, tomado remédios tradicionais, alternativos, medicina chinesa, acupuntura, pai de santo, rituais xamânicos, nada disso funcionava. Na verdade, existia uma coisa que funcionava, que realmente fazia seus soluços pararem temporariamente, era a ingestão contínua de cerveja. Alguém pode se perguntar se o método número um para cura de soluços funcionava para ela, a resposta é não, a água apenas intensificava o seu soluçar. Quase todos os dias ela tinha que ingerir pequenas doses de cerveja para conseguir levar o seu dia de uma maneira razoavelmente tranquila.
Um dia desses a garota teve que sair de casa às pressas, ela tinha que passar no banco e verificar uma questão financeira da empresa para a qual ela trabalhava. Ritualisticamente, ela tomou uma long neck para controlar seus soluços, a ingestão de apenas uma garrafa conseguia segurar seus soluços por mais ou menos uma hora, ela pensou que seria tempo suficiente para passar no banco e cuidar da questão da empresa.
Quando a garota chegou no banco, encontrou uma fila enorme, o tamanho da fila assustava, mas a garota acreditava que daria tempo de resolver tudo antes do soluço voltar. Foi nesse momento que uma das pessoas na fila sacou uma arma e gritou:
-Todo mundo no chão, isso é um assalto!
Outro assaltante tratou de render os dois seguranças do banco e todas as pessoas se deitaram no chão. A garota se revirava no chão, incendiada pelo álcool e preocupada com o provável retorno iminente de seus soluços. Quinze minutos depois, a polícia chegou e um dos assaltantes achou que seria melhor ter um refém consigo. A essa altura, o soluço retornava levemente, o que fez a garota ser notada pelo ladrão de bancos e não deu outra, o ladrão a escolheu como sua refém. Tal escolha fez com que os soluços ganhassem em intensidade, o que fez com que o ladrão ficasse ainda mais nervoso e gritasse:
-Alguém faz essa garota parar de soluçar! que porra! se você não parar de soluçar eu vou te matar!
A garota respondeu entre um soluço e outro:
-Para eu parar de soluçar eu preciso de cerveja! por favor me dê cerveja!
O ladrão ficou ainda mais nervoso:
-Você está louca, querendo cerveja numa hora dessas! Alguém traz um copo de água pra ela!
O outro assaltante trouxe rapidamente um copo de água e deu o copo para a garota, mas ela resistia à água  não queria beber de jeito nenhum, até que o ladrão disse:
-Bebe se não eu te mato agora! não aguento mais essa merda de soluço!
Relutantemente a garota bebeu a água e quase que instantaneamente ela deu um soluço tão forte que a parte de trás da sua cabeça golpeou fortemente o nariz do ladrão que a dominava e ele caiu no chão com o nariz ensanguentado, sua arma tinha ido parar longe. O outro assaltante ficou totalmente atônito, as pessoas rendidas, inspiradas pelo que elas pensavam ser um gesto de coragem da garota aproveitaram a oportunidade e nocautearam o assaltante atônito. A garota se transformou em uma heroína nacional.
Depois daquele dia, a garota, aproveitando a sua fama, resolveu criar uma arte marcial para defesa pessoal baseada nos movimentos involuntários e repentinos do soluço, o Soluço-Jitsu,  e de fato ganhou uma fortuna ministrando aulas no mundo inteiro e vendendo DVDs. Em suas aulas, ela condenava veementemente a ingestão de bebidas alcoólicas.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A Encruzilhada de Barcelos



Pablo Barcelos era um comentarista de futebol das antigas, chegou ao topo devido à sua habilidade em cultivar boas amizades no meio futebolístico e principalmente por saber comentar futebol de uma maneira bem peculiar. Os comentários que saiam da boca de Barcelos em um jogo televisionado eram conhecidos clichês futebolísticos do tipo: "esse time precisa tocar mais a bola", "o time fez um gol, agora vai ficar fechadinho no contra-ataque", além do profético e usado em quase todos os jogos por Barcelos: "Esse gol já estava amadurecendo há uns 15 minutos". Apesar de estes serem clichês utilizados pela maioria dos comentaristas de futebol, Barcelos tinha um jeito bonachão e meio malandro de comentar que dava uma leveza simplória à transmissão, o que cativava muitos telespectadores enfeitiçados pela habilidade do comentarista em esconder o seu conhecimento rasteiro e a sua falta de preparo em seu trabalho.
Era chegada a Copa do Mundo e Barcelos se preparava para mais um grande evento, para ele as Copas do Mundo e as Olimpíadas eram tudo que havia de melhor em sua profissão, poder viajar para um país estrangeiro com tudo pago para exercer aquele seu trabalho fácil com certeza era o sonho de qualquer um.   O seu último grande evento havia sido uma Olimpíada, ele comentava os outros esportes com a mesma "qualidade" que opinava sobre futebol, os telespectadores puderam acompanhar na última Olímpíada grandes comentários como "O Badmington é a peteca de raquetes", "O lance livre é o penalti do basquete" e  o fantástico "empurrou ele pra fora do tatame, não foi ippon?".
Apesar das suas aventuras olímpicas, era nas Copas do Mundo que Barcelos fazia o seu nome, conciliando os clichês com o patriotismo, um de seu clássicos bordões de copa era "Esse é o futebol brasileiro, partiu para o drible e deixou o zagueiro caído no chão", o seu desconhecimento tático não lhe permitia ver o jogo como um jogo de 11 contra 11, só conseguia enxergar o jogador que estava com a bola e aquele que o marcava, sua mediocridade era transmitida via satélite e era partilhada pela maioria dos telespectadores que idolatravam-no.
A Copa do Mundo se desenrolou da maneira habitual, com Barcelos carregando no patriotismo e nos seus bordões famosos. Para a infelicidade do velho comentarista, o Brasil dançou nas Quartas-de-Final, o que prejudicava um pouco o seu "jogo", mas nada que não pudesse ser contornado pela sua malandragem. Era chegada a véspera da Final da Copa do Mundo e Barcelos resolveu relaxar um pouco no bar do hotel, foi quando a visão de um outro jornalista chamou a sua atenção. O jornalista estava mergulhado no seu Laptop, parecia que fazia algumas contas e lia várias revistas. Barcelos com seu jeito malandrão resolveu sentar-se à mesa e conversar com o jornalista:
-Ei cara, eu te conheço você é aquele cara daquele canal a cabo que todo mundo diz que entende tudo de tática...
O jornalista percebeu o desdém na voz de Barcelos.
-Eu tento me preparar para entender o jogo e passar uma informação correta para quem está assistindo ao jogo.
-Bla Bla Bla, quem assiste ao jogo quer se divertir e nada mais.
-Você pode manter o seu estilo divertido e passar boa informação para o público, não são coisas que se excluem mutuamente.
Barcelos não tinha muito o que fazer então resolveu aprender um pouco do que o jornalista sabia de tática.
-Vamos lá então! Me explique algo mais básico.
Talvez animado por uma leve embriaguez, Barcelos se permitiu abrir para esse novo conhecimento e nas duas horas seguintes se maravilhou com a complexidade tática do futebol, todas as nuances do jogo, os estratagemas utilizados pelos técnicos eram incríveis, estava tudo ali na sua frente e ele nunca tinha percebido. Barcelos mal conseguiu dormir naquela noite, uma mistura de arrependimento e expectativa embalava os seus pensamentos.
Finalmente era chegada a Final da Copa, os colegas de Barcelos perceberam que ele estava bem calado, era a calmaria que vem antes das grandes tempestades, uma mudança de curso se aproximava para o velho comentarista, é claro que ele estava com medo, mas alguma coisa lhe dizia que ele deveria se transformar em um verdadeiro expert e utilizar aqueles conhecimentos adquiridos na noite anterior. O narrador convocou Barcelos para um comentário após o primeiro lance de perigo, o comentarista começou a desfilar seus novos conhecimentos de maneira um pouco confusa:
- Essa marcação pressionada foi o que causou a diminuição no fluxo de passes do time adversário, resultando na interceptação da bola e uma finalização bem proveitosa.
O narrador olhou assustado para Barcelos, o que era aquilo, quem era aquela pessoa estranha do seu lado que fazia comentários rebuscados, totalmente diferentes do conhecido Barcelos.
Barcelos continuava sua busca pela excelência com comentários como "O 4-4-2 é um esquema ultrapassado atualmente", "esse volante não pratica um futebol moderno, falta dinâmica ao seu jogo", lá pelas tantas quando os fãs de Barcelos já reclamavam nas redes sociais pedindo pelo velho Barcelos, o narrador lhe disse com o microfone desligado:
-Você está maluco? como você sempre disse, em time que está ganhando não se mexe, comente como você sempre comentou! Se você continuar com isso você vai perdeu seu emprego porra!
Mas naquela altura o conhecimento tático adquirido parecia ter se apoderado completamente do comentarista e ele retrucou:
-Nada disso, mesmo se o resultado é positivo, pode-se modificar taticamente a equipe para que a mesma possa elevar o nível do seu jogo!
A profecia do narrador se tornou realidade, a audiência daquele jogo foi tão ruim que Barcelos perdeu seu emprego no dia seguinte, ele acabou saindo do seu transe tático com o choque da demissão, dali para frente Barcelos nunca mais conseguiu arrumar emprego em nenhuma emissora. Os canais mais populares tinham medo do "Barcelos tático" e os outros canais não queriam o "Barcelos malandrão". Ele ficou para o resto dos seus dias vivendo nessa encruzilhada, a passar seus dias sentado em uma mesa de bar se arrependendo do dia em que se sentou em uma mesa de bar.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A Flor de Lótus



Gabrielle estava preparada para a maratona olímpica que se iniciaria dentro de instantes, acreditava que poderia conseguir uma boa classificação, porém não chegava ao ponto de sonhar com uma medalha. Toda a sua preparação ao longo de uma vida culminava naquele momento antes de ser dada a largada.
O sol de Los Angeles era implacável, a prova se iniciava com Gabrielle se esforçando para se adaptar àquele calor insuportável que minava a sua resistência.
À medida que a maratona se desenrolava, Gabrielle sentia que se deflagrava dentro dela uma batalha entre a sua mente e o seu corpo. O seu espírito competitivo lhe dizia que ela tinha todas as condições de terminar aquela prova e realizar o sonho de cruzar a linha de chegada no estadio olímpico lotado, uma imagem que a fazia seguir mesmo com escassas energias, o corpo por sua vez lhe dava sinais de cansaço evidentes, começava a lhe faltar suor para manter a temperatura de seu corpo em um nível aceitável. Mas ela continuava, com cada passada que dava se aproximava do seu sonho, a mente tentava dominar o corpo pelo menos por mais alguns minutos, o estádio olímpico não estava distante...
Gabrielle dobrou a próxima curva e se deparou com o imponente Coliseu de Los Angeles, porém no estado físico que ela se encontrava, a visão parecia ser insuficiente para manter o seu corpo ereto, a sua postura já não era de uma atleta, mas sim de uma velha cansada. Só mais alguns metros - pensou Gabrielle. Nessa altura da prova cada metro era como uma maratona em si, cada passada era um suplício, cada ato de respirar era como se a atleta inspirasse Gás Carbônico e expirasse Oxigênio, tamanha era a sua estafa, mas de alguma forma a sua mente segurou as pontas e ordenou que as pernas continuassem. Mesmo tentando manter uma passada digna, esta era, nesse ponto, uma caminhada sofrida.
À duríssimas penas, a combalida Gabrielle entrou no estadio olímpico lotado. A força de vontade demonstrada pela atleta contagiou todo o estádio que aplaudiu em uníssono. Sendo aplaudida ou não, Gabrielle não desistiria àquela altura da maratona, ela atingiu uma espécie de estado alterado de sua consciênscia, conseguiu transformar as incríveis dores que sentia em mais um combustível para continuar sua árdua caminhada. A maratonista dobrou a última curva da pista, alguns médicos se colocavam perto dela, mal sabiam esses doutores que tamanha era a sua determinação que caso eles tentassem impedir-na de terminar a prova, ela seria tranquilamente capaz de lhes empurrar e simplesmente seguir, seguir e seguir em frente.
A linha de chegada agora estava muito perto e apesar do estádio tremer de emoção, Gabrielle nada ouvia, para ela naquele momento, tudo se resumia ao seu objetivo. A sua mente só permitiu ao corpo o descanso merecido, após a conquista do objetivo almejado, desabando gloriosamente nos braços dos médicos. Gabrielle concluiu a sua maratona epicamente, entrou para o seleto panteão dos heróis olímpicos, porém a sua grande conquista naquele dia foi a descoberta de uma Gabrielle que Gabrielle não conhecia, ela descobriu na adversidade o seu melhor lado, um lado forte que dali em diante dominou todos os aspectos de sua vida. Ficou provado que o ser humano é como a Flor de Lótus, nós florescemos nas situações mais complicadas com as quais nos deparamos.